Era uma vez uma gotinha, vivia com seus pais e irmãos numa nuvenzinha pacata, no interior de uma gigante névoa flutuante.
A pequenina e seus irmãos recebiam muita atenção e aprendizado dos pais e demais moradores da comunidade; a maioria dos estudos era sobre como agir quando descessem ao solo e a importância de se tornar chuva.
— É preciso muita coragem – dizia o papai, explicando aos filhos – ser chuva não é trabalho para qualquer pingo! A nossa função é regar a terra, lavar o mundo, virar rio e voltar para o mar… tudo isso leva tempo, mas uma vez descendo da névoa, adquirimos a tranquilidade necessária para todo esse processo.
Todas essas palavras mexiam com a cabeça da pobre gotinha, deixava-a pensativa e depois sentia medo. Pensava: como posso virar chuva e deixar meus irmãos e família? Como será descer à terra? Será que vou fazer amizade com outras partículas?
Esses pensamentos deixavam a doce gotinha triste, não queria crescer, não queria ser chuva, não queria descer a um lugar tão longe sem ninguém que conhecesse.
Perguntou aos irmãos:
— O que estão achando dessa ideia de virar chuva?
— Estou ansiosíssima – disse a irmã.
— Não vejo a hora de sentir tanta adrenalina! Desabafou o irmão.
— Mas… gente, não estaremos mais sempre juntos…
— Quem te disse isso? - perguntou a irmã? - Quando descermos seremos um só… seremos unidade com a terra, depois com rio e mar… a gente sempre estará junto!
— E outra – insistiu o irmão – você não pretende ser criança pra sempre, né?
— É… não sei – Concluiu nossa gotinha, com o coração confuso.
Depois dessa conversa inebriante com os irmãos, havia ficado ainda mais intrigada… Como e o porquê de todos estarem tão ansiosos para crescer e desempenhar seu papel de adulto? Eles já tinham missões diárias como gotinhas e as cumpriam muito bem: brincavam juntos, formando gotas maiores, depois se desmembravam; corriam deitadas feito chuva no chão; aprendiam todas as leis da chuva, da nuvem e de ser misturado… aquilo já era um trabalhão!
Foi tanta a agonia da pequena que resolveu falar com a mamãe, e começou:
— Mamãe, por que as pessoas querem tanto ser chuva? Eu não vejo graça nenhuma em descer rapidamente por uma velocidade grande, junto com um monte de outros pingos, como se fôssemos soldados indo furiosos para uma guerra… eu não me sinto confortável com a ideia de correr em multidão e depois bater no solo, nem com a ideia de que vou me separar de vocês, parece tão injusto... vamos ficar aqui pra sempre… seria bem legal! A gente poderia abrir uma escola só pra ensinar aos demais pingos os deveres da comunidade… ah, mamãe, não quero ir…
A mamãe suspirou fundo e enquanto a criança falava, podia notar a sua aflição, percebia que não era uma birra, um capricho ou algo comum à idade dela, verdadeiramente sua menina estava com medo. Ela pensou: de onde essa criança tirou esses pensamentos? Como posso ajudar esse anjinho a cumprir sua missão na vida?
A pequena trazia tanta emoção e dúvida no rosto, um olhar cheio de lágrimas, e sua voz estava embargada, parecia que ia desabar em prantos a qualquer momento.
—É nosso propósito na vida, filha… é o caminho de toda gota, se juntar a outras e virar chuva! Sei que hoje parece estranho e assustador, mas quando chegar seu momento, você vai se surpreender com os acontecimentos. Por hora, aproveite seu momento com seus irmãos porque a infância passa depressa – dizendo isso, a mamãe beijou-lhe o rosto e a gotinha saiu mais alegrinha, correndo pra procurar seus maninhos.
Depois daquela conversa com a mamãe a criança procurou não pensar mais naquelas coisas que a inquietavam, e seguiu o conselho da mãezinha: brincou pra valer com os irmãos e amigos…
A comunidade inteira já sabia quando era o momento de virar chuva, era um evento importante a todos… e enfim, chegara o dia… o clima começava a ficar diferente, e todas as gotas dançavam na nuvem, como se fosse uma preparação para uma guerra, exatamente como nossa pequena imaginava, e enquanto via toda aquela movimentação e alegria acontecer, seu coração começou a acelerar e uma ansiedade descomunal deixava-a apavorada… sentia que o coração estava na garganta, uma pulsação tão forte que parecia fechar-lhe a respiração… não conseguia mais pensar direito, começou a ficar ofegante e quando ia chorar, sentiu que alguém segurou suas mãos.
Eram seus irmãos que diferentes dela, estavam ansiosos para o evento… os dois alí, olhando para aquele amontoado de pingos dançantes. O vento começava a soprar como um redemoinho, os cabelos das três crianças balançavam na direção que ele os levava, e em meio a dança de todos os pingos, os três foram puxados para dentro daquele redemoinho na nuvem… os irmãos fecharam os olhos… suspiravam com a adrenalina, era uma emoção maravilhosa, mas ela apertava-lhes a mão com força, queria, mas não conseguia aproveitar o momento, insistia para que eles a olhassem, e eles, carinhosamente fecharam os olhos da gotinha – feche os olhos – diziam – feche os olhos e apenas sinta… nós estaremos aqui! E movida pela força dos dois que seguravam sua mão, fechou os olhos! De repente sentiu que também fazia parte da dança, do redemoinho, do vento… da chuva!
No seio da nuvem havia algo como que um mover interno, agitando as gotículas em círculos, e numa força de junção daqueles pequenos seres, aquela grande nuvem começou a soltar suas lindas, fortes e determinadas gotas de água, entre essas tantas estava toda a família da nossa menina, e ela, ao ver seus irmãos entregues à alegria de ser chuva sentiu uma alegria tão inexplicável e passou a sentir também que agora era chuva… ela olhou ao redor e viu toda a sua comunidade gritando de alegrias… descendo fortemente… então se soltou e pôde sentir toda a força do vento que a impulsionava para baixo, e sentia o friozinho da descida, e a terra se preparando para receber a benção da sua chuva…
Enquanto caía, esqueceu que era preocupada, que era cuidadora, esqueceu que tinha medo de ser adulta, de perder o aconchego do lar, esqueceu tudo… só sentia a vida, a missão a ela atribuída agora era doce como estar em família… e caiu rapidamente pelo lajeado de uma casa, escorregando junto ao pequeno rio em que se tornou, depois caiu sobre uma criança que sorria de alegria pela chegada da chuva, viu outras crianças a brincar com a garotinha, todos felizes… depois caiu novamente, virando rio outra vez, junto aos seus irmãos família e comunidade, que continuavam felizes por terem feito um bom trabalho…
Agora já não era mais gota, e sim, um rio, junto com seus irmãos, pais e os demais da comunidade, agora era mais uma molécula e sentia que tudo aquilo fazia sentido…
Agora as palavras do Pai tinham um novo significado, e estava calma, tranquila e feliz com todas aquelas memórias do caminho…
Todo o medo que a paralisava não fazia mais sentido, pois agora entendia sua missão e amava participar de um processo tão importante como o seu: virar chuva!